A esperança seria a maior das forças humanas, se não existisse o desespero.
Victor Hugo
Apesar de se esperar que ocorressem, os dias de calor surgiram inesperados, já todos reclamavam contra o frio. Hoje, reclama-se contra o calor excessivo e evocam-se saudades de tempo mais ameno.
À porta da repartição de finanças era disso que se falava, nas filas que se misturavam, uns em busca de senhas, outros de atendimento, a maioria de conforto e compreensão, mas todos para exarar protesto: “vão, mas é, trabalhar”; “tendes o vosso garantido”; “uma pessoa paga e ainda é obrigada a isto”; “se não chegam, contratem mais pessoal, o que mais há, por aí, são desempregados que querem trabalhar”. Lá dentro, os funcionários, diligentes, sem mãos a medir, impassíveis, exerciam a função.
Feitas as contas, estimando demoras, tinha para mais de hora e meia. Fui tomar café, evitando juntar-me ao coro de desabafos. A cafeína ajuda-nos a ser justos, sem perder a racionalidade. Regressei, ainda com tempo para acabar de ler a revista que comprara, observar os sinais de desconforto que se desenhavam em cada rosto, partilhar o fumo dos cigarros devorados pelos vizinhos de infortúnio, participar do corrupio de entra e sai para vigiar a ordem de chamada, afixada em letreiro luminoso. Qualquer descuido, ao cabo de quase duas horas, seria incomportável para os nervos, a paciência ou a compreensão.
Quando me acotovelava para tentar controlar a informação, entre corpos exasperados, insultos à mulher que se esquecera de trazer a senha, ao pai que para poupar meia dúzia de patacos o obrigava aquela cena, recriminei-me por não ter conseguido detetar os motivos que levaram as finanças a solicitar-me, reiteradamente, uma declaração de substituição do modelo 3 do IRS e, consequentemente, não poder resolver o problema no espaço virtual, sem ter de recorrer diretamente aos serviços e submeter-me àquele calvário que testemunhava presencialmente.
Era sobretudo gente humilde a que se queixava do tempo que fazia e da falta que lhes faz o acesso à internet.
Quando o meu número piscou na tela, acompanhado de sinal sonoro e indicação do lugar de atendimento, precipitei-me para a funcionária, profissional e educada.
A venda de direitos de preferência, em relação a títulos de uma instituição bancária, não tinha sido declarada. O montante era pequeno (19,91 euros), mas a falta existia. O anexo G não tinha sido preenchido e eu não tinha razão.
O meu estado de perplexidade deu lugar ao reconhecimento do dever de cidadão. De triste e irritado, passei a ficar esperançoso: - afinal, sempre iam alargar a base tributável de contribuintes!
A não ser que isto signifique, simplesmente, que a voracidade do fisco faça com que os mesmos venham a pagar cada vez mais.
Antero Afonso